Propedêutica

O estudo da semiologia, com os seus sintomas e sinais, e a arte de conseguir esses dados, através da semiotécnica consitituem o corpo da Propedêutica Clínica, fundamentais para a boa prática da Medicina, para um bom relacionamento médico-paciente e primeiro passo para orientar o diagnóstico do paciente.

Regras da Anamnese - HPMA - Jose Ramos Jr

Regras do HPMA (texto)



B)            HISTÓRIA PREGRESSA DA MOLÉSTIA ATUAL (H.P.M.A.):
É a parte mais importante da anamnese, e a mais difícil da propedêutica funcional que o médico aprende e aperfeiçoa durante toda a sua vida profissional, porque dependerão, as informações MAIS COMPLETAS, dos conhecimentos de fisiopatologia para a descrição e a interpretação dos sintomas, da vivência com os doentes, e que trarão, evidentemente, a finalidade da Medicina como Ciência e como Arte, ou seja, a orientação, a formulação ou a sugestão dos diagnósticos, dentro de princípios científicos. Constituindo o mais difícil método propedêutico, é óbvio que somente serão mais completas aquelas histórias nas quais os sintomas são PORMENORIZADOS em base dos conhecimentos da sua fisiopatologia e semiogênese, e ainda, das influências sobre o estado nutritivo, sobre os outros órgãos, aparelhos ou sistemas e, também na mesma ordem de importância, a sua repercussão sobre as condições psicológicas intelectuais, afetivas e instintivas do paciente.

REGRAS ÚTEIS PARA A OBTENÇÃO DA H.P.M.A.

1 — Tanto quanto possível deixar o paciente relatar, com as próprias palavras e expressões, os sintomas de que se queixa. É o que se chama anamnese passiva. Frequentemente, entretanto, tal é a prolixidade ou falta de significação descritiva dos sintomas, que o médico é obrigado a fazer um expurgo das notícias e informações inexpressivas, passando a orientar as perguntas sobre os sintomas, com comparações ao nível social e de instrução do paciente. É a chamada anamnese ativa. A anamnese é então, na grande maioria das vezes, ou passivo-ativa ou ativo-passiva.

2     — As expressões que contenham um significado importante, e TÃO SOMENTE ESSAS, serão colocadas entre aspas ou seguidas do termo latino colocado entre parênteses — SIC
Exemplo: a minha dor de estômago parece fome, mas não é fome e passa comendo (sic); a dor do peito é um aperto, aparece só no esforço, ao andar depressa, irradia para os braços e parece que vou morrer (sic). Estas e outras expressões valem por um diagnóstico, tão importantes são os conhecimentos fisiopatológicos para a sua interpretação; úlcera duodenal, para a primeira, e angina de peito (insuficiência coronariana aguda), para a segunda.

3 — Os sintomas deverão ser sempre referidos afirmando ou negando todos os seus caracteres nos seus itens

a) INICIO, DURAÇÃO, RELAÇÃO COM AS FUNÇÕES DO ÓRGÃO CUJA ALTERAÇÃO FUNCIONAL OU ANATÔMICA OU AMBAS, o provocaram.
b) EVOLUÇÃO CONTÍNUA, DESCONTÍNUA com períodos ASSINTOMÁTICOS, e suas durações.
c) PERÍODO DE SEMELHANÇA e de DISSEMELHANÇA.
d) Fenômenos ou outros sintomas que MELHORAM ou PIORAM o sintoma principal, ou simplesmente, ACOMPANHAM o sintoma principal.
e) Repercussão sobre o estado de NUTRIÇÃO e PSICOLÓGICO (intelectual, afetivo e instintivo).
f) Relatar sempre a AUSÊNCIA ou não de outros sintomas concernentes às alterações do órgão ou sistema em questão.
g) SEMPRE referir sobre o passado fisiológico ou patológico, desde o nascimento, daquele órgão ou sistema acometido.

4     — Sintomas que NÃO SE CORRELACIONAM e que deverão subdividir a HPMA, em duas ou mais partes.
Exemplo: Há uma sequência de sintomas gástricos, porém, também há dor lombar que se relaciona com a função motora dos músculos da região aos movimentos de flexão, extensão, lateralidade ou ao repouso muscular da região, e também, o paciente tem tonturas paroxísticas, tem automatismo psicomotor (falar dormindo, gritar dormindo, sonambulismo, etc.) Todas as queixas e sintomas são da mesma ordem de importância para o paciente. Esta anamnese se refere então a três situações clínicas: a) a uma afecção gástrica; b) a uma afecção dolorosa de massa lombar — fibrosite ou miosite primária ou secundária a um vício de postura, a uma discopatia vertebral ou a uma espondilite; c) equivalentes de disritmia cerebral paroxística.
Há necessidade, pois, de saber discernir e dissociar as queixas e os sintomas que poderão exprimir diferentes condições patológicas que não se correlacionam, e que somente ao médico cabe esta incumbência. Esta ocorrência embora possa se dar nas enfermarias é mais comum nos ambulatórios e nos consultórios particulares, principalmente dos clínicos.

5     — Não aceitar, salvo exceções, diagnósticos clínicos, anatômicos ou funcionais feitos ou comunicados pelos pacientes.
Os exemplos comuns são: "sofro do fígado", "acho que é tiroide", "tenho pressão alta", "acho que é do coração", etc., etc. Dirigir o inquérito anamnéstico no sentido de verificar a veracidade ou não dessas expressões.
Há uma tendência dos pacientes em querer adiantar o diagnóstico do órgão sede da lesão, por motivos vários — ostentação, para mostrar que conhece algo de medicina; autopunição, nos sentimentos de culpa, e inconscientemente, apresentam queixas ou sintomas que se referem a pessoas ou situações que o levaram a esse sentimento de culpa; insegurança, desejando uma afirmação de diagnósticos de leigos ou de outros médicos sobre a causa de seus males. É necessário que se faça o inquérito anamnésico pormenorizado no sentido desses diagnósticos, rever e interpretar exames subsidiários se existirem, e não admitir como válida a informação dada pelo paciente leigo, e até, às vezes, de paciente médico.

6 — A HPMA poderá ser auxiliada por elementos familiares. Na impossibilidade do próprio paciente informar, ou mesmo, na necessidade de confirmação dos sintomas e a sua evolução referidos pelo paciente, esse auxílio é importante e imprescindível. Outras vezes são pessoas testemunhas dos acontecimentos que auxiliarão a anamnese, como por exemplo, a descrição de uma crise convulsiva e seus pormenores, as condições de um acidente, as de uma intoxicação ou as de uma queimadura.

7 — Maneira de interrogar — Todo e qualquer paciente que se apresenta à consulta nos consultórios, ambulatórios ou enfermarias, acha-se, em grau variável, porém, sempre existente, em estado de fantasia inconsciente da autodestruição pelo temor da morte ou de alteração funcional de algum órgão ou aparelho que o incapacite para a sua vida ulterior. As manifestações dessa fantasia inconsciente, que é a angústia, se fazem pela depressão ou pela ansiedade, ou por ambas, ou ainda, por resignação ou revolta que não deixam de ser a aceitação daquela manifestação inconsciente, porém, nunca de maneira agradável ou satisfeita. Estes tipos de reação psíquica dependem muito do tipo de personalidade do paciente (ver Tipos Constitucionais em Classificação Psico-valorativa no Exame Geral), quer na sua qualidade, quer na intensidade, e precisam ser bem reconhecidos pelo médico em todos os seus pormenores. Depende desse reconhecimento, e da maneira afetiva, séria, sóbria e atenciosa do médico dirigir o seu interrogatório, que a relação médico-paciente resultará com valores positivos, tão úteis para o planejamento terapêutico de qualquer doença, considerando-se o paciente como um todo — corpo e alma.
Interrogar, pois:

a) com expressões ao nível de instrução, da inteligência e da cultura do paciente.
Exemplo: "comichão" na garganta, o "nó na garganta", o "cansaço" que o Sr. sente é "quebradeira" ou é "falta de fôlego", a "disenteria" que o Sr. diz é só "obra mole" ou tem "obra e mais sangue, catarro", "matéria" (pus) etc., etc.
b) não dar um tom emocional à pergunta. Frequentemente o estudante ou o médico, na sua fantasia inconsciente de ostentação ou de inferioridade, para demonstrar conhecimentos, explica o porquê de tal ou qual sintoma ou diagnóstico, o que na grande maioria das vezes aumenta o estado de insegurança do seu paciente. O profissional deve demonstrar humildade, tranquilidade, ao mesmo tempo em que também certa autoridade sem agressão nos gestos, ou ameaças de que a doença é grave, o prognóstico é ruim; o tom das palavras deve ser sério para obter a maior quantidade de elementos sobre os sintomas somáticos, e particularmente, sobre os sintomas psicógenos.
Exemplos: "Esse aperto no peito pode ser angina de peito", o médico se expressando durante a descrição do paciente, "e isso é grave, o Sr. pode morrer numa dessas dores", "isso significa que as artérias coronárias do seu coração não estão boas", "a sua vesícula está cheia de pedras e uma delas pode entupir o canal e ter que operar de urgência", "a úlcera pode furar, as fezes pretas indicam que está sangrando e isso é perigoso", a sua "falta de ar — dispneia suspirosa não é nada, "é só nervoso" e desse jeito, se piorar precisa internar no sanatório de doenças mentais", etc.
c) Frequentemente, nos pacientes revoltados ou ansiosos, deve-se voltar usando outras palavras ou expressões no interrogatório, para afirmar ou infirmar determinadas interpretações fisiopatológicas no decurso da anamnese. Ai então, depois de certa confiança que o paciente vai adquirindo pela maneira serena, sóbria, interessada e atenciosa, que o médico já desenvolveu até aqui, de regra, se obtém com os pormenores necessários aquele sintoma que não fora suficientemente valorizado e avaliado.
Exemplo: o "cansaço" é falto de ar ou dificuldade de atividade psicomotora ou músculos que se cansam logo após o início da marcha ou ao executar uma determinada atividade. A interpretação da primeira expressão é uma dificuldade respiratória por afeção respiratória ou por insuficiência cardíaca congestiva; a segunda é própria da condição psicológica da "depressão"; e a terceira, é a impotência muscular por alteração metabólica (anemia ou acidose fixa ou respiratória), por lesão nervosa (polinevrite), por lesões musculares, etc. A pormenorização ou a pesquisa de outros sintomas, depois que o paciente esteja mais confiante, será fácil e rápida, dando evidentemente a interpretação adequada da anamnese na direção dos diagnósticos fisiopatológico ou funcional, anatômico, e até, muitas vezes, o etiológico.

8 — Referir, quando houver, e para isso SEMPRE interrogar, os tratamentos já feitos, os medicamentos, e os seus resultados. Se foram feitas intervenções cirúrgicas relacionadas à doença atual, providenciar e obter os relatórios cirúrgicos: o inventário no ato cirúrgico sobre as condições do órgão doente e suas complicações, as lesões em outras vísceras, o comprometimento inflamatório ou neoplásico dos gânglios regionais ou à distância, os resultados anátomo e histopatológicos; o decurso do pós-operatório imediato, e os resultados de intervenções cirúrgicas sobre os sintomas relacionados com as queixas e os sintomas atuais.
As internações em hospitais ou serviços hospitalares universitários, quando referidos, deverão ter relatórios clínicos ou cirúrgicos ou psiquiátricos dos serviços responsáveis.

9 — Referência dos elementos etiológicos — A esta altura do inquérito sobre os sintomas que o paciente apresenta, o médico que conheça suficientemente a fisiopatologia dos sintomas, que já tenha também conhecimentos de epidemiologia e de patologia geográfica, poderá incluir na HPMA, as informações positivas ou negativas no que respeita aos elementos etiológicos, e que poderão também estar contidos nos antecedentes mórbidos pessoais. Porém, quando ao critério dirigido pelo raciocínio crítico dos sintomas, da interpretação fisiopatológica dos mesmos, como uma sequência quase obrigatória, assaltam a indagação do médico as possíveis ou prováveis causas daqueles transtornos funcionais ou sintomas, é lícito e até recomendável que esses elementos etiológicos, epidemiológicos ou de patologia geográfica já sejam referidos como regra da HPMA.
O exemplo de uma insuficiência cardíaca congestiva (ICC), instalada em um jovem, leva à indagação natural se a cardiopatia é congênita ou adquirida. Na segunda hipótese as afirmações do passado epidemiológico da doença de Chagas, da enfermidade reumática (ex., coréa "minor"), da esquistossomose, deverão ser negativas, e ao contrário, existirá a revelação da cianose intensa logo aos primeiros anos de vida no grupo das cardiopatias congênitas cianóticas, e no grupo não cianótico, se esse grande sintoma sinal não estiver presente. A revelação por pergunta bem dirigida sobre a procedência de zona endêmica de D. de Chagas, de esquistossomose, sugerem o fator etiológico correspondente em cardiopatia de jovem.
Se a ICC se instala em paciente idoso, com a informação negativa sobre a enfermidade reumática, a coréa "minor", a esquistossomose, o passado bronco-pulmonar crônico que levará à síndrome do "cor pulmonale crônico", a etiologia deverá estar contida na afecção comum e praticamente a única existente para aquele grupo etário avançado — de 50 anos em diante (embora possa existir até antes de 50 anos) -— que é a aterosclerose.
A diarreia é fétida (putrefativa), acompanhada de febre alta, de puxos (espasmos do reto), muitas vezes com eliminação de catarro fétido ou com cheiro de esperma ou cola, diferente de uma ou outra situação, de eliminação de catarro geralmente sem febre, embora possam existir fezes diarreicas, fétidas de putrefação, determinarão para a primeira, a etiologia provável de "Shigelose", e para a segunda, a amebíase por "Entamoeba histolítica", ou, já o início de uma reto-colite ulcerativa grave.
A dispneia é "suspirosa" não é permanente, sofre redução da sua intensidade e há dias até que não se apresenta, coincide com determinados conflitos emocionais ou estados de indecisão ou de medo, tudo decorrente do estado de "falta de independência e de segurança" que é o fundamental psicodinâmico da angústia patológica (existe uma angústia fisiológica que é episódica, quase instantânea em qualquer indivíduo); a etiologia decorre do tipo constitucional psicológico e/ou de educação daquele paciente na infância com falta de amor e/ou do exemplo da iniciativa, do expediente, da insuflação da insegurança, da mística, pelos familiares ou não.
Assim então, a vivência da fisiopatologia, da prática clínica, completará ou poderá ser útil para, se possível, encaminhar ou denunciar os elementos etiológicos prováveis ou certos daquela síndrome constante na HPMA.

10 — Referir a impressão sobre a fidelidade das informações no final do HPMA.
Principalmente nas observações clínicas das enfermarias dos serviços universitários, para onde se dirigem os pacientes de pequeno nível de instrução, e que, com certo grau de humildade, por respeito ou desejo de colaboração, afirmam, exageram, ou negam o conteúdo interpretativo das perguntas do estudante ou do médico. É lógico que são as contradições e a sequência de informações imprecisas que darão, no conjunto, o julgamento do todo dessa história pregressa da moléstia atual, como digna de crédito ou fidedigna, ou, o contrário. Não raramente, em outras oportunidades nos dias subsequentes, apresenta-se a necessidade de uma nova reformulação de perguntas, de enumeração cronológica dos sintomas pelo mesmo estudante ou médico, ou até por outro elemento do serviço médico. Deve então, no final da HPMA ser referido se a anamnese nesta parte é ou não digna de crédito.